quinta-feira, junho 05, 2008

O espírito peditório

Passei todo o dia diante do espelho e à noite eu não sentia fome ou qualquer necessidade. Queria o perdão, mas como não o havia encontrado ainda, saí para uma caminhada. A rua é que parecia correr enquanto meus pés eram vultos descompassados, um do lado do outro. O peso que vinha de cima não me deixava erguer a cabeça. Eu acorcundava aos poucos até que, ajoelhado, comecei espalmar o chão em movimento, me movendo feito um chipanzé.

Antes de começar a rolar, pensei no que me envergonhava mais: se aquele exato momento ou se toda a vida pregressa.

Volto. Entoo uma gargalhada que vai ficando mais esganiçada à medida que arreganho os dentes diante o espelho. Rio de mim com cada vez mais força. Alegra-me a escuridão da minha garganta, meus lábios ficando brancos, de tão ajustados à minha arcada, meus olhos afinam. Era ridículo, mas nada me fazia rir mais que o próprio ato de rir.

Paro. Tomo novamente a rua e constato que não sabia onde estava. As pessoas se olham todas, mas ninguém cruza olhares. Os muros muito altos, eu não entendia o que diziam as placas e os anúncios. Tudo completamente desconhecido.

Segui desorientado até que, longe, avistei o depósito de uma fábrica de caixões gigantes. Entrencostadas às paredes, urnas descomunais apontavam para o céu, preparadas para o lançamento. Serviam de jazigo para famílias inteiras; seriam abertas quantas vezes fossem um velho álbum de fotografias. E a cada vez expunham os restos dos velhos familiares. Filhos amontoando pais, irmãos e avós, como um desmoronamento de judeus, nos quintais dos campos de concentração.

Acordo assustado diante do espelho. Achei que ficaria ali o resto da vida, mas volto para rua. Sinto fome e sede. Peço ajuda com a mão estendida. Me seguro nas roupas das pessoas, dou fisgões, trapos se acumulam em minhas mãos. Caí algumas vezes.

Desisto de implorar. Adormeço ali por muito tempo.

Machal