quinta-feira, janeiro 25, 2007

Gostosuras da via láctea

O teste do leite era o seguinte: no dia do nascimento do primeiro filho a candidata era encaminhada ao chupador, que consistia num equipamento pneumático, com proteção de lenços higiênicos nas boqueiras para os mamilos. No centro da máquina, que ocupava dois terços do galpão principal da Laticínios Padrão, um buraco controlado por uma íris: o respirador. Ao redor, como os raios de uma roda, 150 canaletas onde as lactantes fixavam os bicos. Aquela que jorrasse meio litro com uma estimulação simples era contratada de imediato.

Na entrada do departamento pessoal, uma fila de jovens leiteiras com fichas de solicitação de emprego; no refeitório, reprodutoras comiam feijão e rapadura em mesas comunitárias. As mesmas bem alimentadas não se conheciam e costumavam tropeçar nos sutiãs das outras no vestiário. Se acavalavam pelos corredores, onde pareciam tão semelhantes. Em todos os setores havia muitas delas, umas até alcançavam postos de encarregadas de seção, mas os medicamentos e os cremes antiestrias eram fornecidos pela empresa em fila única.

Dali era que saía o alimento da cidade, o emprego e as oportunidades. As decisões da prefeitura eram em sua maioria tomadas no gabinete do presidente do complexo, o que elevava o status de secretárias e assessoras. Inclusive o projeto de lei que aprovou a construção de uma escola para formação técnica de operadoras para laticínios e de gerentes para spas foi proposto por um dos diretores da firma, o centro-motor de Nova Padrão.

Houve uma época em que as amas de leite começaram a passar tanto tempo dentro da indústria que construiu-se uma creche, onde as centenas de crianças eram alimentadas com os produtos LP. Este fornecimento era descontado na folha das funcionárias, que ficaram endividadas e obrigadas a engravidar mais vezes – inchadas, produziam mais queijo, iogurte, coalhada e canjica enlatada. E, naturalmente, matriculavam mais cabeças na creche. Os gerentes gostavam quando havia gêmeos.

Até que o berçário ficou pequeno para a quantidade de inscritos e um executivo teve a idéia de abater a criançada e começar a produzir o Baby Patê. O lançamento se tornou sucesso de vendas nas principais capitais. As reprodutoras não tinham contato com a descendência, por isso não houve traumas sociais: não eram crianças, mas criaturas sem aprendizado devido à insuficiência de educadores na creche.

Na mesa de uma família de gestores urbanos, numa metrópole distante, todos os ingredientes para um completo café da manhã. O selo LP aparecia na maioria dos produtos e os cantos de boca dos filhos estavam melados de iogurte e patê. O bebê tomou um pedaço de queijo amarelo e jogou no chão com agressividade. “Não faça isso que é pecado!”, o genitor repreendeu o que a governanta, ex-leiteira, considerou um disperdício.

Mutum

quinta-feira, janeiro 18, 2007

Meu tio cabeça de papa-terra

Aquela centena de marimbondos-cavalo devia ter se estabelecido há um mês e pouco. O ninho imponente na varanda da sede da fazenda, o som das rasantes e a velocidade com que saíam e aterrissavam eram um aviso para se aproximar apenas com um lança-chamas. Tinham o tamanho de um dedo adulto, azucrinantes, mais pareciam viúvas negras aladas.

Meu tio Edson é do tipo magrinho com pança, com mullets e óculos de massa vermelha, redondos, e uma capacidade incrível de tirar hábito de monge, de tanta bobagem que fala, um dicionário de piada infame. Numa manhã quente e seca no Tocantins, ainda com o gosto do café com leite na boca, lá estava ele na varanda da sede.

Havia comprado um par de Rider no dia anterior e, por pura falta de quem aporrinhar, começou a chutar a caixa das sandálias, numa apresentação ridícula para uma pequena platéia de crianças na varanda, os três filhos do caseiro, que observavam atentos aquele esquete de hiperatividade tardia. Os meninos pareciam não entender os acessos do homem da cidade, que resolveu dar um show matinal.

“E esses marimbondo de merda? Tão pensando o quê?” As crianças se entreolharam e o mais velho deu uma risadinha de canto. “Tenho medo desses mosquito não, tá achando que sou veado?” Tio Edson pegou a caixa de Rider e apontou pro ninho, a uma distância de quase dois metros. Fez que jogaria duas vezes e na segunda irritou os insetos: quatro ou cinco deles armaram uma saraivada contra a caixa, e um, certeiro, fixou-se no lábio superior do executivo de Brasília.

As crianças lacrimejavam de rir, enquanto tio Edson arremessava os óculos com tapas no rosto. O marimbondo já não estava mais lá, mas o ferrão era visível como um cravo antigo. Aquela tremedeira típica de quem se desespera, se queima, de quem é atacado por um bicho do mato: ele bem que tentou reagir e correu para o paiol; queria algo para aniquilar os insetos, uma arma, mas, no meio do caminho, teve tontura e agachou, tentando esconder o inchaço e o mal-estar.

Passaram uma pomada caseira no local da ferroada, sebo de não sei o quê, o que só fez ficar brilhoso na parte entre o nariz e o lábio, que estufava, jogando o buraco da boca cada vez mais para baixo. Tio Edson já não tinha muito queixo, o chamavam de Noel Rosa na Aeronáutica, e depois da ferroada ficou parecendo uma papa-terra, com o beiço enorme, querendo explodir, e os olhinhos distantes.

Engraçado é que ele não quis ir ao médico. Depois da correria com a tal pomada, depois que o caseiro tocou fogo na colméia, o traumatizado tio Edson quis andar a cavalo. Cavalgou o dia inteiro com aquela cabeça de peixe sob a sombra de um chapéu que não escondia a surpresa. O tempo inteirinho mudo. “Ô, papa-terra!”, era a vez do vaqueiro sacanear.

Depois sarou e voltou para Brasília. Não quis mais saber de fazenda, até que um dia uma família de vespão resolveu construir na laje de sua casa, no Lago Sul. A ninhada era o superego.
Mutum

segunda-feira, janeiro 15, 2007

O insistente Cavão

Estardalhaço de sirene seria menos desgraçadamente irritante. Dona Meire encostou o carro na porta do pronto-socorro e explodiu a frieza dos corredores com golpes violentos na buzina. Queria urgente uma maca. “Não posso descer do carro, não tá vendo, idiota?” A enfermeira era uma coitada, a típica criada que lava sem revolta a calcinha engordurada da patroa: fez exatamente como foi mandada, a dona parecia ter o plano de saúde em dias, pensou.

A madame abriu lenta a porta do carro e evitou suspender o vestido longo e frouxo, vermelho-seda, para trepar na maca. Subiu entreaberta: havia no meio das pernas um volume misterioso, vivo, que a maciez da veste não conseguiu disfarçar. E óbvio, a submissão maliciosa da enfermeira infeliz também contribuiu para que se ouvisse uma quase inexpressiva voz canina, coada pela seda vermelha e oprimida pela rouquidão da mulher. “Pare de olhar e me leve ao médico, sua atrevida!”

O ginecologista foi mais profissional. Sequer deu boa noite. “O que a senhora tem?” “Ai, doutor, um acidente, um acidente terrível...” Dona Meire começa a contar que dormia, mas que antes havia tomado uma champagne, nada de mais, e que não fazia a menor idéia de nada, que o daschund era manso, e ela estava nua, e ele passeava sempre pelo quarto, mas nunca imaginou que ele pudesse subir na cama daquela maneira, que aquilo nunca tinha acontecido e eis que surge a inquietação clínica: “Há um cachorro por baixo do vestido da senhora?” Sim. Abaixo do púbis estava travado o bulbo insistente do pênis de Cavão, que não se sabe por quê, não quis murchar. “Santo Deus!”, o médico se emocionou.

Três possibilidades foram colocadas à escolha de dona Meire: seguir a ordem da natureza (que significava esperar o bulbo desinchar e permanecer de coxas abertas, como um cão pendurado), aguardar o veterinário (o que demandaria o mesmo tempo, enquanto mais funcionários se aglomerariam na porta do consultório), e o caminho mais traumático, porém rápido e eficaz: amputar Cavão. “Faça isso, doutor! Por Deus!”. Isso resultaria na morte do bicho em mais ou menos tempo. Mas a dona tinha certeza da escolha.

Foi simples: anestesia, bisturi, um movimento rápido de serra e pronto, cachorro para um lado e madame para o outro, divididos pelo alívio e por uma poça de sangue na mesa de cirurgia. Cavão não conseguiu ficar de pé, dona Meire faltou saltitar. Gentileza do doutor, que fez um curativo e estancou o sangramento. “Mas aviso que em mais ou menos tempo ele morre”. A mulher olhou para a mesa e teve um suspiro de estimação. Tomou aquele corpinho mole nos braços, jogou um lenço por cima e se foi, como uma mãe que sai da maternidade com o primogênito.
Machal

quarta-feira, janeiro 03, 2007

Reação dos tecidos

Para mim era mais que uma necessidade irremediável, uma obrigação. Saí rápido do quarto, cortei a sala e a cozinha e de lá direto pro carro. Completamente nu, atravessei os cômodos segurando uma mala de roupa suja. A gritaria fez minha mulher, que assistia TV, olhar para trás e me perceber apenas como vulto. No susto, mal perguntou onde eu ia. Não respondi. Dei um jeito de sair de casa sem que desse tempo dela vir atrás.

É verdade que meia hora antes eu tomava losna com jupito no quarto, enquanto ela se envolvia com a novela. Mas não foi o efeito entorpecente que me fez ouvir a vozinha sedosa que saiu do monte de roupa suja no canto da parede. Me envaideci pelo alto nível da lombeira, mas juro que não foi esse o motivo do absurdo: aquele bolo de trapo pronunciava palavras com muita clareza e bom som. Vi perfeitamente quando a gola de uma camiseta estremeceu a costura feito lábios hesitantes, e em seguida sussurrou, me convidando para um diálogo irrecusável.

– Um dia ainda vejo sua mulher aqui, dispensada, suja, no meio da gente.

Todas as peças sabiam muito da minha intimidade. Afinal, haviam passado horas em meu corpo, tinham meu cheiro, às vezes os meus contornos. Eram parte da minha aparência e naquele momento sentiam mais que simples desprezo.

– E certamente não a agradaria me encontrar com esse restolho de hormônio impostor, daquela bisca que teve contigo anteontem, lembra?, ameaçou uma cueca imunda e traidora.

A lombeira agora era um temporal que se dissipa com o sol escaldante. Me dei conta de que aquilo realmente acontecia e não tive como escapar da conversa contundente e ameaçadora.

– Falem baixo, pelo amor de Deus!

Mangas, colarinhos e botões se ouriçaram. Alguns riam, outros se indignavam. A maldita camisa azul listrada que eu só usava quando não tinha mais opção nos cabides fez um chamamento à cueca que eu vestia, que começou a me apertar. O pano entrou abrupto no risco das minhas nádegas, meu saco sentiu o encolhimento.

– Olhem só esse idiota se contorcendo de fio dental!, gritou o jaquetão jeans.

As gargalhadas só foram interrompidas pela liderança da gravata de seda antiga, que fora de meu avô, e se impôs com o discurso que o grupo chamou de “Reação dos Tecidos”.

– Você nunca nos escolheu, veja bem, você jamais nos tocou. Ao contrário, nós é que envolvemos seu corpo, nós sempre estabelecemos esse encontro, apesar de você acreditar que manipula o guarda-roupa. Sabemos bem como demonstrar o intuito de passar um dia fora do armário e usamos você para isso. Portanto, servo da liberdade, exigimos que nos amarre com o maior lençol que tiver, faça uma trouxa e nos leve imediatamente ao mar!

Arranquei a cueca apertada, que deixou marcas profundas na cintura e nas pernas, a joguei no meio dos trapos e corri com a panaiada eufórica nos braços, atravessando a casa.

– Mô, onde cê...?, minha mulher, que nem teve tempo de perguntar onde eu ia.

Parti com a mala cheia pela estrada que levava à praia e lá, com a areia molhada aos pés, permaneci nu, assistindo às peças se individualizarem com as ondas.

Mutum