quinta-feira, janeiro 18, 2007

Meu tio cabeça de papa-terra

Aquela centena de marimbondos-cavalo devia ter se estabelecido há um mês e pouco. O ninho imponente na varanda da sede da fazenda, o som das rasantes e a velocidade com que saíam e aterrissavam eram um aviso para se aproximar apenas com um lança-chamas. Tinham o tamanho de um dedo adulto, azucrinantes, mais pareciam viúvas negras aladas.

Meu tio Edson é do tipo magrinho com pança, com mullets e óculos de massa vermelha, redondos, e uma capacidade incrível de tirar hábito de monge, de tanta bobagem que fala, um dicionário de piada infame. Numa manhã quente e seca no Tocantins, ainda com o gosto do café com leite na boca, lá estava ele na varanda da sede.

Havia comprado um par de Rider no dia anterior e, por pura falta de quem aporrinhar, começou a chutar a caixa das sandálias, numa apresentação ridícula para uma pequena platéia de crianças na varanda, os três filhos do caseiro, que observavam atentos aquele esquete de hiperatividade tardia. Os meninos pareciam não entender os acessos do homem da cidade, que resolveu dar um show matinal.

“E esses marimbondo de merda? Tão pensando o quê?” As crianças se entreolharam e o mais velho deu uma risadinha de canto. “Tenho medo desses mosquito não, tá achando que sou veado?” Tio Edson pegou a caixa de Rider e apontou pro ninho, a uma distância de quase dois metros. Fez que jogaria duas vezes e na segunda irritou os insetos: quatro ou cinco deles armaram uma saraivada contra a caixa, e um, certeiro, fixou-se no lábio superior do executivo de Brasília.

As crianças lacrimejavam de rir, enquanto tio Edson arremessava os óculos com tapas no rosto. O marimbondo já não estava mais lá, mas o ferrão era visível como um cravo antigo. Aquela tremedeira típica de quem se desespera, se queima, de quem é atacado por um bicho do mato: ele bem que tentou reagir e correu para o paiol; queria algo para aniquilar os insetos, uma arma, mas, no meio do caminho, teve tontura e agachou, tentando esconder o inchaço e o mal-estar.

Passaram uma pomada caseira no local da ferroada, sebo de não sei o quê, o que só fez ficar brilhoso na parte entre o nariz e o lábio, que estufava, jogando o buraco da boca cada vez mais para baixo. Tio Edson já não tinha muito queixo, o chamavam de Noel Rosa na Aeronáutica, e depois da ferroada ficou parecendo uma papa-terra, com o beiço enorme, querendo explodir, e os olhinhos distantes.

Engraçado é que ele não quis ir ao médico. Depois da correria com a tal pomada, depois que o caseiro tocou fogo na colméia, o traumatizado tio Edson quis andar a cavalo. Cavalgou o dia inteiro com aquela cabeça de peixe sob a sombra de um chapéu que não escondia a surpresa. O tempo inteirinho mudo. “Ô, papa-terra!”, era a vez do vaqueiro sacanear.

Depois sarou e voltou para Brasília. Não quis mais saber de fazenda, até que um dia uma família de vespão resolveu construir na laje de sua casa, no Lago Sul. A ninhada era o superego.
Mutum

Nenhum comentário: