segunda-feira, janeiro 15, 2007

O insistente Cavão

Estardalhaço de sirene seria menos desgraçadamente irritante. Dona Meire encostou o carro na porta do pronto-socorro e explodiu a frieza dos corredores com golpes violentos na buzina. Queria urgente uma maca. “Não posso descer do carro, não tá vendo, idiota?” A enfermeira era uma coitada, a típica criada que lava sem revolta a calcinha engordurada da patroa: fez exatamente como foi mandada, a dona parecia ter o plano de saúde em dias, pensou.

A madame abriu lenta a porta do carro e evitou suspender o vestido longo e frouxo, vermelho-seda, para trepar na maca. Subiu entreaberta: havia no meio das pernas um volume misterioso, vivo, que a maciez da veste não conseguiu disfarçar. E óbvio, a submissão maliciosa da enfermeira infeliz também contribuiu para que se ouvisse uma quase inexpressiva voz canina, coada pela seda vermelha e oprimida pela rouquidão da mulher. “Pare de olhar e me leve ao médico, sua atrevida!”

O ginecologista foi mais profissional. Sequer deu boa noite. “O que a senhora tem?” “Ai, doutor, um acidente, um acidente terrível...” Dona Meire começa a contar que dormia, mas que antes havia tomado uma champagne, nada de mais, e que não fazia a menor idéia de nada, que o daschund era manso, e ela estava nua, e ele passeava sempre pelo quarto, mas nunca imaginou que ele pudesse subir na cama daquela maneira, que aquilo nunca tinha acontecido e eis que surge a inquietação clínica: “Há um cachorro por baixo do vestido da senhora?” Sim. Abaixo do púbis estava travado o bulbo insistente do pênis de Cavão, que não se sabe por quê, não quis murchar. “Santo Deus!”, o médico se emocionou.

Três possibilidades foram colocadas à escolha de dona Meire: seguir a ordem da natureza (que significava esperar o bulbo desinchar e permanecer de coxas abertas, como um cão pendurado), aguardar o veterinário (o que demandaria o mesmo tempo, enquanto mais funcionários se aglomerariam na porta do consultório), e o caminho mais traumático, porém rápido e eficaz: amputar Cavão. “Faça isso, doutor! Por Deus!”. Isso resultaria na morte do bicho em mais ou menos tempo. Mas a dona tinha certeza da escolha.

Foi simples: anestesia, bisturi, um movimento rápido de serra e pronto, cachorro para um lado e madame para o outro, divididos pelo alívio e por uma poça de sangue na mesa de cirurgia. Cavão não conseguiu ficar de pé, dona Meire faltou saltitar. Gentileza do doutor, que fez um curativo e estancou o sangramento. “Mas aviso que em mais ou menos tempo ele morre”. A mulher olhou para a mesa e teve um suspiro de estimação. Tomou aquele corpinho mole nos braços, jogou um lenço por cima e se foi, como uma mãe que sai da maternidade com o primogênito.
Machal

3 comentários:

Anônimo disse...

poderia esse doutoire fazer uma mudança de sexo nesse tal de Cavão, já que agora não tem mais sua pá-escavadeira.

mui bom esse visual do olho de puerco.

Anônimo disse...

Pobre Cavão! Já dizia um nobre amigo "Pintos andam por lugares obscuros"

Tonhonero

Anônimo disse...

pintos de cachorro, então, não só andam, como permanecem em lugares obscuros