sexta-feira, dezembro 22, 2006

Prostituto

Depois que perdi o emprego achei que era insuficiente. Achei que não conseguiria fazer mais nada na vida a não ser encarregar o despacho da distribuidora. No momento da demissão ressurgiu inevitável o dia do teste psicológico para ingressar como baixo funcionário, quando fui admitido há treze anos. O ar tinha mais fuligem naquele dia, o chão do saguão era seco e desconfortável, as solas do meus sapatos que já nem existiam mais. Péssimas lembranças. Mas, sim, tirei uma bolada. E sim, fiquei viciado em elixir paregórico.

Ainda não havia percebido, mas uma mancha de mofo crescia na parede da cozinha, que, aliás, estava deprimente naquela tarde que. Voltei para casa mais cedo e, ao invés de conferir canhoto de nota fiscal, vi uma luz cinzenta invadir a sala. Me aproximei e assisti um flamingo voar harmoniosamente até que, num lapso de coordenação motora, perdeu o controle das asas e começou a cair. Havia se esquecido como voar. Esticava o pescoço, tentando inutilmente manter altitude. E despencava feito uma pedra – um profundo sentimento de perda me arrematava.

Quanto tempo joguei no lixo por causa daquela porcaria de emprego. Minha preciosa e irrecuperável juventude era uma embalagem de pirulito dispensada pelo vidro do carro, uma camisinha amarrada que afunda no monte de papel higiênico no cesto. A empresa me tirava, a cada segundo que passei no despacho nestes treze anos, gotas de suor e fios de cabelo como frações da minha integridade física e emocional. Foram treze, mas devo ter envelhecido mais de vinte anos. As marcas na pele da cara, um acerto miserável no bolso – eis minhas partes no trato. Pelo menos aquele gansão rosa-claro ainda não havia tocado o solo.

Um consolo: era só abrir a porta da geladeira que o vasilhame de caldo de arraia, que tinha comprado dum pescador, estaria lá.

Por isso não desisti de ganhar a vida. Nem cogitei que não conseguiria por causa da idade. Fui pra rua e descobri ser possível sobreviver com uma atividade bastante cotidiana: passei a tirar dinheiro da uretra. Foi difícil no começo, tive situações quase impossíveis, clientes arrogantes que deixavam faltar a higiene e a feira pra alugar meu bastão. Mas me especializei rápido, e muitos deles se contentavam com o tato e o sabor, nada de invasões. Dinheiro é tudo igual, meu filho, só muda de bolso. Era meu motivo.

Aquele flamingo retomou controle e altitude num rasante. Eu me tornei fiel ao pescador, que teve serviço para sumir no horizonte, de tanta arraia que começou a capturar. Um vasilhame já não dava para uma semana. E eu me sentia jovem outra vez.
Machal

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Diálogo no turfe-manco

“Não consegui sair do restaurante sem concluir que aquilo tudo é parte dum processo de longo prazo. Que a comida quente vira bolo e fica morna, até cair n’água e enfrentar a fria correnteza, para finalmente se desmanchar e iniciar o novo ciclo. Desconsiderei, obviamente, toda má sensação que a idéia pudesse gerar – meu nariz e meus olhos ficaram com a razão. Toda brancura dos dentes e maciez dos cabelos das moças na mesa ao lado se perderam em uma questão de etapa. Uma gota de chuva é antes o suor frio das nuvens, na altura do paraíso, envolvida pela maravilhosa assepsia do céu. Em seguida, tem o auge, a velocidade e o poder de dissipar o ar e os animais, oprimir as plantas, destruir o alimento. E por último ser divida por anelídeos sedentos na escuridão da terra, agarrada pelos capilares pegajosos das raízes e subir às folhas, retornar ao ar e iniciar novo ciclo, feito a comida...”

(Mandril interrompe)

“As lâmpadas e as estrelas têm olhos, caro Toco, somos vistos de cima a todo instante, mas não nos damos conta disso e concordamos com as coisas que os nossos olhos acham que são...”

(Toco retoma)

“...Me levantei da mesa com miserável desconforto, deixei como última impressão às moças da mesa ao lado o semblante de quem comeu muita carne – só faltou no meu estômago o pêlo do bicho para reforçar a noção de que um mamífero havia levado um tiro de pressão na cabeça, e depois sido esquartejado para caber melhor na minha barriga. A vida é a divisão, as partes como sentido do todo...”

(Mandril retoma)

“...Às vezes pegamos emprestados os olhos dos outros, o que nos permite distinguir instâncias, mas se você compara com tanta facilidade um aniversário a um pedaço de carne, certamente aceita a sorte e o azar como respostas. Pois afirmo que há uma razão superior, que foge da nossa compreensão, mas que nos rege e tem como combustível a coerência universal dos nossos atos. Chame de deus, buda, gaia, satanás...”

(Toco sente arder uma velha ferida e responde com outro exemplo contundente)

“Eu não disse que não existe algo que nos rege e que fuja do nosso controle. Acredito na coerência, mas não proclamo cegamente meus olhos superficiais. Não foram a sorte ou o azar que fizeram aquela jovem japonesa se soltar deliberadamente do terceiro andar do shopping e cair de cabeça no terraço, enquanto famintos por presentes de Natal pararam um instante para assistir o sangue da suicida se espalhar pela integridade do solo. Porque assim que o corpo foi retirado, e por incompetência da faxina, houve quem escorregasse no restolho de sangue. E houve quem carregou nos sulcos dos solados pedaços perdidos do cérebro da morta, partes que foram levadas para casa sem o menor remorso do dono dos calçados. Frações de massa encefálica chegaram ao lar junto com presentes do shopping, sem que isso incomodasse qualquer parte envolvida, o consumidor ou a família do cadáver.”

A conversa é interrompida com o início da corrida de cavalos mutilados.

Mutum

sexta-feira, dezembro 08, 2006

A máscara e a impureza

Shirley limpava a unha do pé com um clipe aberto, tirava uma massinha e levava perto do nariz, depois esfregava os dedos e tirava outra. O sopro da panela de pressão não a deixou ouvir a campainha. Era Basofa que apertava o botãozinho do lado de fora, não agüentou esperar e apelou pro tapa aberto na porta, aí a Shirley ouviu.

A vizinha chegou com creme no rosto, uma pasta branca ao redor dos olhos e da boca. Shirley perguntou o que era e a outra mostrou um potinho quase vazio, as mãos fedendo a cloro, e falava do marido, que era bom e potente.

Outro dia, a vizinha chegou sem avisar e pegou Shirley de calcinha desbotada preparando café. Os buracos de traça na parte de trás da veste não intimidaram Basofa, que queria mostrar as impressionantes fotos que havia feito do marido dormindo nu e provavelmente tendo um sonho erótico. Uma haste lustrosa partia do meio da cama, espécie de mastro sem vela, o que deixou Shirley curiosa.

A vizinha começou a contar a conversa que teve com o sobrinho magricela, que também viu as fotos e gostou muito do tio ali:

– Então ele coloca no potinho e dá pra usar uns três dias.

– Nossa, tia!

– Não tem nada melhor pra cravo.

– Pois eu levaria um tiro de cartucheira na cara, depois me jogaria num tanque de areia, só pra remover a sujeira dos buracos com esse creme facial.

– Que é isso, meu filho, eu ajeito um pouco pra você.

Shirley estava cada vez mais interessada nas propriedades esfoliantes, também queria o produto, mas teve vergonha de pedir. Basofa ofereceu, mas colocou alto preço, o que não diminuiu as expectativas.

Dias depois, Shirley areava as bocas do fogão e ouviu cutucões na parede. Lembrou-se que o banheiro da vizinha era logo ali atrás. O barulho cessou em poucos minutos, e em seguida tocou a campainha insistente. Basofa entrou com os cabelos molhados, alegre e com sorrisão opaco, contrastado com o alvo da máscara, o pote vazio nas mãos. Contava mais uma história de captura do prazer selvagem durante um banho corriqueiro que havia se transformado numa cachoeira de proteína e testosterona.

Shirley desistiu do pudor: implorou para ir até a casa da vizinha naquele momento. Se pudesse atravessaria as paredes num ímpeto incontrolável, mas Basofa ponderou. “Deixa ele descansar um pouco. Enquanto isso, a gente negocia”. “Eu não agüento mais esperar”. Basofa insistiu na negativa e transpareceu receio. “Mas não pode ser assim, minha filha, tem que dar um tempo pra ele repor as energias, eu trago um pouco mais tarde...” “Eu preciso é agora!” Basofa desabou com um empurrão.

Shirley invadiu a casa da vizinha e viu aquele homem de costas peludas bater uma massa na bacia, na cozinha. Sobre a mesa, farinha, maisena, água e cola Tenaz.
Machal

sexta-feira, dezembro 01, 2006

Cine Jurupari

“– Economizar?

Um finlandês arrepia a nuca, enquanto que um turco estica a barba e amaldiçoa gerações, e Pedro não compreendia:

– Mas, por que, irmão?

Divino, mais velho, explicava que era necessário guardar o dinheiro por causa da crise que se aproximava, que o Estado era falido e que não havia mais esperança, mas o irmão ignorava boçalmente, ao eco dos armários vazios de comida:

– É necessário?

Divino baixa a cabeça, como quem pede desculpas, silencioso; como se renunciasse a um cargo; e dá as costas.

– Irmão?

Ele vai até a varanda, e com os olhos baixos percebe o chão ficar mais claro à medida que se aproxima do pomar: raios trincavam o céu e atingiam galhos secos e pontiagudos. Bolas de fogo brotavam das árvores e estralavam as gotas finas de ácido que caíam. Uma planície encarnada era suspensa.

– A miséria chegou!

Gorgolhão de calor invade a casa pela entrada principal. Desesperados, os irmãos correm, esquivando-se dos móveis inflamados, e se abraçam com força na sala em chamas. Tentam esconder o rosto no ombro do outro, e se agacham, enquanto a tinta forma bolhas e escorre gordurosa pelas paredes.”

Ascenderam as luzes, subiram os letreiros. A sala do Cine Jurupari era esvaziada ao final de “O Divino comeu ópio”. Toco se levantou sorridente da poltrona e repercutiu: “Eu imaginei o capeta chegar e empalar os dois!”. “Vamos, que o sol vai nascer de repente”, avisou Mandril.

Fora do cinema o sol forte fazia arder as vistas. “Vamos comer!” Eles foram a uma lanchonete. Sentaram-se perto da vitrine e pediram carne, batata, pasta de queijo e cerveja. Comiam e conversavam. “O melhor são os efeitos especiais” “Discordo, o roteiro é melhor”. “O que não seria nada sem a fidelidade dos efeitos.” “Não, o roteiro é independente.” “Jamais! Os efeitos o temperam: põem mais vida em certos momentos, amenizam outros.” “Mas não passam de interpretações da produção, não necessariamente as minhas ou as suas.” “Mas interpretações feitas com muita...”

Um mendigo surge do lado de fora, bate na vitrine e pede ajuda para inteirar uma marmita. Urge com a boca decomposta e fala em boa altura. Interrompido, Toco finge que não é com ele. O homem não pára de murmurar, enquanto espreme os calos das mãos no vidro e embaça a parte em volta do nariz. Mandril nada diz e os dois começam a comer rápido, como que ameaçados, para definitivamente superar a presença indigente.


Pagam a conta e levantam-se, satisfeitos com a comida e com o atendimento, e vão em direção à porta antipânico. Uma legião de miseráveis os aguardavam do lado de fora, mas os dois amigos saíram distraídos e foram subitamente sorvidos pela massa encardida e fedorenta, feito duas pepitas que afundam na lama, envolvidos nos braços desvalidos, que roçavam suas peles macias com uma casca ressequida. Alguns mendigos lamberam forte os dois nos lábios.
Mutum