(Mandril interrompe)
“As lâmpadas e as estrelas têm olhos, caro Toco, somos vistos de cima a todo instante, mas não nos damos conta disso e concordamos com as coisas que os nossos olhos acham que são...”
(Toco retoma)
“...Me levantei da mesa com miserável desconforto, deixei como última impressão às moças da mesa ao lado o semblante de quem comeu muita carne – só faltou no meu estômago o pêlo do bicho para reforçar a noção de que um mamífero havia levado um tiro de pressão na cabeça, e depois sido esquartejado para caber melhor na minha barriga. A vida é a divisão, as partes como sentido do todo...”
(Mandril retoma)
“...Às vezes pegamos emprestados os olhos dos outros, o que nos permite distinguir instâncias, mas se você compara com tanta facilidade um aniversário a um pedaço de carne, certamente aceita a sorte e o azar como respostas. Pois afirmo que há uma razão superior, que foge da nossa compreensão, mas que nos rege e tem como combustível a coerência universal dos nossos atos. Chame de deus, buda, gaia, satanás...”
(Toco sente arder uma velha ferida e responde com outro exemplo contundente)
“Eu não disse que não existe algo que nos rege e que fuja do nosso controle. Acredito na coerência, mas não proclamo cegamente meus olhos superficiais. Não foram a sorte ou o azar que fizeram aquela jovem japonesa se soltar deliberadamente do terceiro andar do shopping e cair de cabeça no terraço, enquanto famintos por presentes de Natal pararam um instante para assistir o sangue da suicida se espalhar pela integridade do solo. Porque assim que o corpo foi retirado, e por incompetência da faxina, houve quem escorregasse no restolho de sangue. E houve quem carregou nos sulcos dos solados pedaços perdidos do cérebro da morta, partes que foram levadas para casa sem o menor remorso do dono dos calçados. Frações de massa encefálica chegaram ao lar junto com presentes do shopping, sem que isso incomodasse qualquer parte envolvida, o consumidor ou a família do cadáver.”
A conversa é interrompida com o início da corrida de cavalos mutilados.
Mutum
Um comentário:
belíssimo.
lágrimas vêm aos meus olhos neste momento.
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