sexta-feira, dezembro 01, 2006

Cine Jurupari

“– Economizar?

Um finlandês arrepia a nuca, enquanto que um turco estica a barba e amaldiçoa gerações, e Pedro não compreendia:

– Mas, por que, irmão?

Divino, mais velho, explicava que era necessário guardar o dinheiro por causa da crise que se aproximava, que o Estado era falido e que não havia mais esperança, mas o irmão ignorava boçalmente, ao eco dos armários vazios de comida:

– É necessário?

Divino baixa a cabeça, como quem pede desculpas, silencioso; como se renunciasse a um cargo; e dá as costas.

– Irmão?

Ele vai até a varanda, e com os olhos baixos percebe o chão ficar mais claro à medida que se aproxima do pomar: raios trincavam o céu e atingiam galhos secos e pontiagudos. Bolas de fogo brotavam das árvores e estralavam as gotas finas de ácido que caíam. Uma planície encarnada era suspensa.

– A miséria chegou!

Gorgolhão de calor invade a casa pela entrada principal. Desesperados, os irmãos correm, esquivando-se dos móveis inflamados, e se abraçam com força na sala em chamas. Tentam esconder o rosto no ombro do outro, e se agacham, enquanto a tinta forma bolhas e escorre gordurosa pelas paredes.”

Ascenderam as luzes, subiram os letreiros. A sala do Cine Jurupari era esvaziada ao final de “O Divino comeu ópio”. Toco se levantou sorridente da poltrona e repercutiu: “Eu imaginei o capeta chegar e empalar os dois!”. “Vamos, que o sol vai nascer de repente”, avisou Mandril.

Fora do cinema o sol forte fazia arder as vistas. “Vamos comer!” Eles foram a uma lanchonete. Sentaram-se perto da vitrine e pediram carne, batata, pasta de queijo e cerveja. Comiam e conversavam. “O melhor são os efeitos especiais” “Discordo, o roteiro é melhor”. “O que não seria nada sem a fidelidade dos efeitos.” “Não, o roteiro é independente.” “Jamais! Os efeitos o temperam: põem mais vida em certos momentos, amenizam outros.” “Mas não passam de interpretações da produção, não necessariamente as minhas ou as suas.” “Mas interpretações feitas com muita...”

Um mendigo surge do lado de fora, bate na vitrine e pede ajuda para inteirar uma marmita. Urge com a boca decomposta e fala em boa altura. Interrompido, Toco finge que não é com ele. O homem não pára de murmurar, enquanto espreme os calos das mãos no vidro e embaça a parte em volta do nariz. Mandril nada diz e os dois começam a comer rápido, como que ameaçados, para definitivamente superar a presença indigente.


Pagam a conta e levantam-se, satisfeitos com a comida e com o atendimento, e vão em direção à porta antipânico. Uma legião de miseráveis os aguardavam do lado de fora, mas os dois amigos saíram distraídos e foram subitamente sorvidos pela massa encardida e fedorenta, feito duas pepitas que afundam na lama, envolvidos nos braços desvalidos, que roçavam suas peles macias com uma casca ressequida. Alguns mendigos lamberam forte os dois nos lábios.
Mutum

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