sexta-feira, dezembro 15, 2006

Diálogo no turfe-manco

“Não consegui sair do restaurante sem concluir que aquilo tudo é parte dum processo de longo prazo. Que a comida quente vira bolo e fica morna, até cair n’água e enfrentar a fria correnteza, para finalmente se desmanchar e iniciar o novo ciclo. Desconsiderei, obviamente, toda má sensação que a idéia pudesse gerar – meu nariz e meus olhos ficaram com a razão. Toda brancura dos dentes e maciez dos cabelos das moças na mesa ao lado se perderam em uma questão de etapa. Uma gota de chuva é antes o suor frio das nuvens, na altura do paraíso, envolvida pela maravilhosa assepsia do céu. Em seguida, tem o auge, a velocidade e o poder de dissipar o ar e os animais, oprimir as plantas, destruir o alimento. E por último ser divida por anelídeos sedentos na escuridão da terra, agarrada pelos capilares pegajosos das raízes e subir às folhas, retornar ao ar e iniciar novo ciclo, feito a comida...”

(Mandril interrompe)

“As lâmpadas e as estrelas têm olhos, caro Toco, somos vistos de cima a todo instante, mas não nos damos conta disso e concordamos com as coisas que os nossos olhos acham que são...”

(Toco retoma)

“...Me levantei da mesa com miserável desconforto, deixei como última impressão às moças da mesa ao lado o semblante de quem comeu muita carne – só faltou no meu estômago o pêlo do bicho para reforçar a noção de que um mamífero havia levado um tiro de pressão na cabeça, e depois sido esquartejado para caber melhor na minha barriga. A vida é a divisão, as partes como sentido do todo...”

(Mandril retoma)

“...Às vezes pegamos emprestados os olhos dos outros, o que nos permite distinguir instâncias, mas se você compara com tanta facilidade um aniversário a um pedaço de carne, certamente aceita a sorte e o azar como respostas. Pois afirmo que há uma razão superior, que foge da nossa compreensão, mas que nos rege e tem como combustível a coerência universal dos nossos atos. Chame de deus, buda, gaia, satanás...”

(Toco sente arder uma velha ferida e responde com outro exemplo contundente)

“Eu não disse que não existe algo que nos rege e que fuja do nosso controle. Acredito na coerência, mas não proclamo cegamente meus olhos superficiais. Não foram a sorte ou o azar que fizeram aquela jovem japonesa se soltar deliberadamente do terceiro andar do shopping e cair de cabeça no terraço, enquanto famintos por presentes de Natal pararam um instante para assistir o sangue da suicida se espalhar pela integridade do solo. Porque assim que o corpo foi retirado, e por incompetência da faxina, houve quem escorregasse no restolho de sangue. E houve quem carregou nos sulcos dos solados pedaços perdidos do cérebro da morta, partes que foram levadas para casa sem o menor remorso do dono dos calçados. Frações de massa encefálica chegaram ao lar junto com presentes do shopping, sem que isso incomodasse qualquer parte envolvida, o consumidor ou a família do cadáver.”

A conversa é interrompida com o início da corrida de cavalos mutilados.

Mutum

Um comentário:

Anônimo disse...

belíssimo.
lágrimas vêm aos meus olhos neste momento.