quinta-feira, abril 05, 2007

Paixão e oferta no milharal

Um tufo de pêlo grosso ainda grudado no bico da botina. O sangue era a cola. Alfredo caminhava e o vento de seus passos fazia aquilo secar mais rápido. “Peruca de porco!”, criatividade que o fazia rir de si mesmo. Não se preocupou em limpar, até porque dali a pouco montaria, cavalgaria pelo pasto e enfrentaria o atoleiro na beira do córrego antes de almoçar. O sinal certamente se perderia depois de tanta atividade. Melhor que fosse de manhã, porque a mulher não viria a marca, senão ficava com dó e não almoçava.

Antes, Alfredo visitava o milharal. O sol ainda era ralo e ele checava as espigas. A colheita daria um bom troco, mas ele pensava no domingo de pamonhada. Menos pelo sabor, mais pelas sobrinhas que viriam da cidade. Os cabelos úmidos dum sabugo inchado eram Carol entre os dedos rachados de Alfredo, que se preparava para despir outra espiga, que seria Fernanda, quando ouviu um triturar de dentes. “Catitus!” Um exército deles ameaçava o domingo.

Catitus em manada matavam onças. “Mas minha botina tem chapa de ferro na ponta.” Alfredo caminhou cuidadoso na direção de onde vinha o barulho e, afastando uma folhagem, viu o primeiro, o maior, estraçalhador de espigas graúdas. “Acerto o focinho, e os outros correm.” Foi por trás. Já perto, estalou os dedos pro bicho se virar. E ele se virou com as orelhas rentes. Pingavam dentes de milho de sua boca e um terreiro se formava com sabugos mascados à sua volta. Ali, a perna direita de Alfredo era uma catapulta: uma bomba que explodiu a boca e o nariz do catitu. Todos os outros que deviam estar por perto ouviram os gritos e fugiram. Aquele estremeceu no chão até estufar o peito.

Eram quase vinte quilos amarrados no lombo do jegue andaluz. No final da manhã, depois dos afazeres na roça, foi pra casa com a sugestão de almoço. “Pururuca de catitu!” A mulher se alegrou, mas preferiu limpar e temperar para o domingo. Poderia substituir a pamonhada, e, ao mesmo tempo, poupar o milho para a feira. “Boa idéia! Vai assar com uma maçã na boca!”

Domingo de manhã. Descem dos carros as sobrinhas, irmãos, cunhadas, compadres. Cachaça com fumo de rolo, cerveja importada com música eletrônica – conversas da roça e da cidade, e, distante, o milharal. Um debate que não interessava a nenhuma das partes, a não ser as pernas de Carol e Fernanda, que assoreavam a mente de Alfredo e faziam uma piracema dentro de suas calças.

“Catitu, catitu!” Sai da cozinha uma bandeja enorme. A pele pipocada a gosto, os buracos vazios dos olhos e o focinho destroçado, que não segurava a maçã, que por isso estava afixada com um arame. Carol já havia bebido demais e o cheiro do assado foi como um dedo na glote: vomitou. Fernanda correu para o banheiro. Alfredo logo pegou uma garrafa de pinga e foi para o milharal. O exército havia voltado e ele juntou um balaio inteiro com milho. Era a oferta. Mas a manada o preferiu à cesta e à cachaça.
Mutum

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