quinta-feira, junho 07, 2007

Enterro ou o grão de areia

Um degradê quase monocromático numa superfície de areia, o branco e o bege claro se revezavam em tons, até chegar no céu, na medida em que variavam minhas sensações, mas todas, sem distinção, ligadas a um estado de plena consciência. Uma aspereza debaixo dos meus pés, que afinava à medida que se distanciava do meu campo de visão, num deserto total e verdadeiro. Eu, nu e dilacerado, a decifrar um bojo de novos sentimentos.

Meus sonhos logo se identificam, poucos foram os que me levaram ao fundo dos mistérios. Por vezes até consegui me ver enrolado na cama, como se estivesse fora de mim, em fuga da minha própria imaginação. Mas ali tive certeza de meus olhos abertos, o calor e a luminosidade do deserto me faziam chorar.

Minutos antes –– eu provavelmente dormia em posição de feto, porque é assim que normalmente acordo –– entra pela porta do meu quarto a silhueta de um homem. O brilho da lâmina da faca era latente, refletia a luz seca que vinha de fora e formatava os contornos da primeira composição do meu dia.

Ouvia vozes velhas, granuladas, roucas: do lado de dentro da minha cabeça, um almoço de família, provavelmente um bem antigo, repleto de desconhecidos e intrusos.

O homem da faca tinha apenas olhos, sem boca ou ouvidos, e não emitia barulho a não ser os de seus passos, um leve caminhar sobre o cascalho fino e remexido que vinha de fora para debaixo da minha cama, que marcava o chão feito uma trilha.

Aquele homem chegou perto e segurou forte uma parte de gordura na minha cintura. O primeiro corte foi superficial e imperceptível. Nada de sangue ou qualquer outro líquido essencial, apenas a surpresa do branco interior. Um grande naco da minha barriga era suspenso por suas mãos, enquanto eu observava, deitado.

Mais cortes vieram, pedaços do meu corpo eram jogados do meu lado, até que senti uma agonia quase desprezível. Era indolor e algo me fazia acreditar na necessidade daquele homem, a mesma coisa me fazia achar aquilo útil. Ainda assim, me mexi bruscamente, e ele entendeu que era pra parar.

Não acredito em sacrifícios sem um mínimo de prazer associado. Nem uma fisgada, sequer a distante sensação da lâmina gelada. Nunca me importei com o que não me desse sudorese, sangramento, dores esparsas, ao menos uma coceira diminuta. Em épocas de miséria, até as intrigas me interessam.

Me recompus e tomei o caminho de cascalho. Caminhei pouco até me deparar com corredeiras de areia que caíam do céu e fechavam todo o chão. O mundo se rendia aos turbilhões de granículos. Árido, o céu era o único com a vantagem da luz, todo o resto era encoberto, mas consegui segurar a faca por bastante tempo antes de ser coberto e me desabilitar do resto do meu corpo, antes que ficasse escuro, antes que a poeira deixasse de invadir minhas narinas.
Macu

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