quarta-feira, novembro 29, 2006

A coisa mais útil do mundo

"Meu nome é Tibúrcio. Tudo que a gente confessa, já não mais nos envergonha. Tem muito homem aí que engana a esposa em uma vida dupla. Faz gato e sapato da confiança da mulher, e nem ao menos, se lembra dos filhos na hora em que goza soltando o bafo quente sobre a amante. Lembrar dos filhos nesse momento certamente brocharia qualquer cidadão normal. Mas lembre-se, existe gosto pra tudo que existe nesse mundo. Eu mesmo, um caboclo trabalhador que levanta antes do sol. Um pai de família. Um pai de duas famílias. Coisa que já não é muito normal. Mas então, eu mesmo amo e desejo uma coisa que os outros não amam. E como eu quero aquilo lá.

O homem é um trabalhador também. E tenho certeza, todo dia nosso caminho se cruzava rumo ao batente. Ele de bicicleta, eu de mobilete. Eu vindo, ele indo. Gente que vive em uma cidade cheia de morro parece ter menos esperança na vida. Essa serra que abraça essa cidade não deixa ninguém ver uma saída, todos sem horizonte algum. E só nos resta subir a serra em um esforço desgracento. Coitado daquele rapaz, meio gordinho, subindo debaixo desse sol esse morro desgracento. Todo suado.

Eu já não tava “dando no couro” há mais de um mês, dois meses, sei lá. Já tava desejando que um qualquer me botasse um chifre na testa. Mulher é bicho carente. Precisa sempre de um chamego. Ou então de um abraço bruto, forte. Um homem que aquiete esse bicho mulher. Perdão, pode me chamar de cagão, mas eu não tenho vontade nenhuma de encostar a mão naquela perebenta. Ela às vezes até fica cheirosinha, com os cabelos molhados. Limpa. Mas aí me dá uma canseira só de pensar em me deitar com ela. Minha vida não tinha mais desejo, não tinha mais tesão.

Todo mês eu tenho que passar na casa da minha sogra pra buscar as contas de luz e água pra pagar. Velha desgracenta. Mais uma vida inútil nesse mundo, nessa cidade. Muitos anos inúteis. Devia morrer essa velha. No caminho da velha vi ao longe um homem em uma bicicleta. Pensei na sorte daquele coitado. No sol que queimava sua cabeça. Pensei se ele também tinha uma vida inútil cheia de gente inútil respirando o mesmo ar. Tentei entender a força que faz o homem continuar, dia após dia, conduzindo um destino rumo ao nada. Um destino inútil. E pra falar a verdade, isso já nem dá mais trabalho. É tudo que nós sabemos fazer. Quanto mais me aproximava do homem da bicicleta notava, nas suas costas, a mancha de suor na camisa. Resolvi diminuir a velocidade quando passei perto dele. Senti um vento frio. Senti o coração bater mais forte. Acho que senti tesão. É, senti, sim.

Pensei naquilo o dia todo. Pensei naquilo a noite toda. Pensei naquilo até cruzar de novo com o trabalhador da bicicleta no outro dia. Queria sentir de novo. Mas pra isso, precisava ver aquilo lá. Resolvi então, esperar. Já não pensava em mais nada. Só queria ver aquilo lá. E sentir aquilo. Ele passou, eu fui atrás. As costas suadas estavam lá. O corpo gordinho. Diminuí a velocidade e só quando mirei aquilo lá, senti de novo, senti aquele tesão lá. Não pensava em nada. Perseguia o coitado, fazia escolta ao trabalhador. Nunca tinha visto nada igual. Que beleza. Molhadinho. Um detalhe. Aquilo lá fazia o mundo valer a pena. Eu não sei o nome disso. É um buraquinho. É o começo do talho da bunda. Aquele talho que tem no meio da bunda. Já tinha cansado de ver talho da bunda. Mas ele por inteiro não tem a beleza, o sentido e o encanto do buraquinho. O buraquinho que a calça não esconde. O cabo da boa esperança, o cofrinho. Aquilo lá, sem nome, é a única coisa útil no mundo.”
Dr. Raul Bukowski, filósofo visceral e gastroenterologista

*Depoimento colhido no final de alguma década.

domingo, novembro 26, 2006

De fora pra dentro

A força dos genes do pai servente de pedreiro, talvez modificados pela dureza da vida, fez com que Washington nascesse com uma anatomia incomum, pelo menos na infância. Das origens naturais, digamos, herdou o atarracamento e as narinas chatas, como duas rolhas de poço.

O garoto troncudo era o orgulho do pai. O amor paterno era latente, mas normalmente manifestado à distância. Se aproximava do garoto para mostrar aos amigos a grande e roxeada, quase preta, bolsa escrotal. Acima daquela pele enrugada e de rigidez variável de acordo com o clima, precipitava-se o priapo do infante: fino e desproporcionalmente grande para um bebê de oito meses. As mãos tinham dedos finos, como de uma moça, e o polegar grosso, tal qual o do pai.

Talvez fosse falta de mimos, o fato é que se distraia com as mãos, apertando os dedos, sentindo texturas e olhando seus pequenos instrumentos. Não tardou para que descobrisse a química perfeita entre polegar e boca. Chupava compulsivamente a principal característica que sobrara de seu velho. Passava o dedão pelo céu da boca, deslizava o tato pela formação óssea e o forçava contra as paredes da bochecha. "É normal. Os dentes já vão nascer", sentenciou com infindável ar de sabedoria o dentista do SUS, recém saído dos corredores da faculdade.

Desgostoso, o pai matou uma garrafa de aguardente, rangendo os dentes a cada gole, e aceitou. "Pelo menos é pintudo", pensou em meio à bebedeira. Com o tempo o garoto foi perdendo o interesse pelo dedo, já destruído depois de meses de forte sucção. O vício tinha sido tão intenso que o maxilar parecia ter se desviado para frente, aumentando as características símias já ressaltadas pelos buracos nasais.

Depois de largar o dedo, Washington ficou sorumbático. Andava de soslaio pelos cantos do barraco e pelo quintal, onde passava a maior parte do tempo. Gostava de mijar na areia de depois fuçar com a mão. O quentinho do líquido, misturado à aspereza dos grãos, o agradava. não tardou para que passasse a esfregar a massa barrenta pelos braços e pernas. Fazia isso escondido. Pela absoluta falta de educação, não tinha noção do que é certo ou errado, mas sentia que seria repreendido caso fosse pego. Por isso se divertia durante a tarde, enquanto o pai estava fora e a mãe cuidava das mãos e pés de suas clientes.

Percebeu que quanto mais água bebesse, mais mijaria e se deliciaria em sua banheira particular. Era essa sua maneira de aprender, sozinho. Num dos banhos enquanto passava a areia molhada pelo corpo e rolava de um lado para outro, sentiu insuportável coceira no cu. Contorceu os dedos do pé e não tardou em socar a mão no rabo. Esfregava com força os finos dedos, quase sem unha, mas cheios de areia, nas paredes externas do ânus.

Acabava de descobrir uma nova forma de prazer. No início se sentia estranho em roçar os dedos lambuzados de areia barrenta pelo cu. Tentava esperar pela coceira. Instintivamente deixava de limpar os restos de bosta dos mingaus e papinhas que lhe enfiavam goela abaixo. Segurava o mijo até a barriga inchar, a espera da coceirinha gostosa. Assim que ela vinha, saia correndo de frente da TV para o quintal. Já tinha perdido o medo de ser flagrado: disparava da mangueirinha jatos intermitentes e fortes. Metralhava a areia do quintal, tirava as roupas e mergulhava de peito. Dava três braçadas e socava com vontade o dedo no cu.

Gostava de brincar com todas as falanges, dentro e fora, mas o dedão era o preferido. Tirava o membro com os cantos da unha apinhados de bosta. Cafungava com força e ria marotamente. Imitava com a boca a forma do ânus e metia-lhe dentro o dedo cagado. Seguiu com o vício por vários meses, até se distrair com outras coisas. Nunca foi descoberto. Só deixou o pai desgostoso quando o velho viu que o velho hábito de Washington de chupar o dedo havia voltado.
Mr. Loath Some

Bambuí: volte sempre

Sujeito subia a serra de uma rua torta em Bambuí. E eu lia na rodoviária da cidade: volte sempre. Mas como voltar? Como voltar, se naquele dia eu queria mijar e o banheiro fedia de um jeito insuportável? Muitas coisas são suportáveis antes de induzir ao vômito. O banheiro de Bambuí, não. O banheiro da rodoviária de Bambuí se transformou pra mim no mais tenebroso cartão de visitas de uma cidade. Em vez de um Cristo, um personagem menos santo me aguardava de braços abertos. Um toco. Um toró. Uma 'obra', como muitos cidadãos bambuienses dizem. Como poderia caber tanto fedor em um objeto (?) de uns 20 centimetros? A ciência deveria estudar o poder de compactação de moléculas naquela merda. Vida apertada dessas moléculas. E a gente ainda reclama da saída do cinema lotado. Pior seria sair de um cinema lotado, a passos de tartaruga, e um sujeito fazer aquilo que vi em Bambuí lá no meio de toda a gente. Seria pior que incêndio. Inclusive, acho que deveria ter uma saída de emergência nesses casos. Quando a senhora gorda demorasse tanto para entrar e sair do banheiro apertado do ônibus, depois de despejar meio quilo daquelas moléculas acima citadas, uma alavanca deveria imediatamente avisar ao motorista: Pára que fedeu! Uns minutos de ar fresco na estrada já melhorariam a 'mufunha' desconcertante. Mas no banheiro da rodoviária de Bambuí não havia ar. Não havia nada. Se o universo começou do nada, o nada era um banheiro sujo de Bambuí. Ali gases se contorciam em uma dança escorregadia de odores. Acredito que o perigo de combustão era constante. Quem diria que ali em minha frente no banheiro de uma cidade mineira, um protótipo da origem do universo se manifestava. E o ser que fez aquilo nem suspeitava ter criado uma miniatura do Big Bang. Uma Big Bosta. Pena que não tive capacidade pulmonar de aguentar aquilo dentro de mim. A visão era horripilante, mas o cheiro era o vencedor. Voltei pro ônibus e sentei na poltrona como se presenciasse o pré-tudo. Me sentia em lugar sem inferno, nem céu. Estava em Bambuí. E o sujeito subia aquela serra em zigue-zague, feito uma formiga. E o sujeito limpava a testa com um lenço. Há poucos minutos tinha cagado um universo.
Dr. Raul Bukowski

sexta-feira, novembro 24, 2006

Patroas esmagadas

Enquanto a primeira barata coçava o casco com a ponta de uma perna e gesticulava, a segunda passava as antenas sobre a massa acinzentada, macia e de odor lacrimejante: lambia um naco rançoso de gordura, curtido na água do esgoto, e se impressionava com a história da amiga:

– Você não vai acreditar no que a Neide fez!

– O quê, mulher?

– Um absurdo, veja você!

– Diz logo, então!

– Não é que ela usou meu banheiro hoje! Imagine que eu chego em casa na hora do almoço e me deparo com um papel higiênico usado no vaso, todo lá, com um rasgo manchado no meio.

– Essa sua empregada é um monstro de tão abusada, eu já avisei.

– Mas essa foi a gota.

– Ora, ela já fez coisa muito pior, admita.

– Não, isso foi o mais repugnante que aquela suína poderia ter feito. Fiquei imaginando: e se me chega uma visita? Eu teria que dizer que era meu?

– Que horror! Só sei que nunca mais voltaria à sua casa se a visita fosse eu.

Durante o diálogo, viajava pela borda do esgoto um tolete pleno, guiado por um camarão caolho, que deslizava seu veículo na papa apodrecida, deixando marcada para trás sua trajetória. Uma das baratas dá com a pata e pára o táxi-bosta. Elas entram e sequer reparam na cara do camarão abjeto.

– Toca pro banheiro, exige a primeira, enquanto a outra se acomoda no assento de verme. Sentadas, elas passam a observar a paisagem – o caminho lhes é longo e propício à contemplação.

Nas paredes das manilhas umedecidas, platelmintos sobem sobre os outros. Eventualmente, um se desprende do teto e cai, para ser guiado pela correnteza lenta, e acaba afundando quando encontra um degrau no curso do canal. Nestes locais sobe um gás adstringente, que afasta os musgos mais sensíveis. Minhocas brancas também não são raras; normalmente ocorrem enroscadas nos tufos de espuma e cabelo que se formam nas quinas.

– Não sou preconceituosa, você sabe, mas não entendo como há quem se envolva com gente como Neide.

– Urg! Me dá nojo!

– Para você ver...

O camarão encosta o belouro rente a um cano que dá para um ralo acima, no teto, por onde entram filetes de luz. As amigas deixam o veículo sem olhar para o guia.

– Atentem, senhoras, para o peso da borracha!, adverte o crustáceo da corcunda enlodada, sem que elas dêem a menor pelota.

As baratas sobem pela tubulação. Passam pelo buraco central do ralo, uma de cada vez, e chegam ao piso branco do banheiro, sem perceber, mas ao lado das pernas castanhas de Neide, que dava uma faxina. As duas permanecem estáticas, apenas mexendo suas antenas, combinando o passeio, enquanto um pé de Neide levita vagarosamente, formando uma sombra ao redor dos insetos.


Três segundos de misericórdia: como uma prensa pneumática a canela seca da empregada alastra o vento e atinge as amigas, que explodem e botam para fora uma pasta branco-amarelada, cuja fedença causa ânsia e precipita Neide, que age rápido e despeja o desinfetante para limpar a imundície das patroas.

Mutum

sábado, novembro 18, 2006

A solenidade

Trincavam os cristais. Espalhados pelo Salão d’Ouro, grupos de no máximo três convidados brindavam sem elevar as vozes. A solenidade fluía, apertos de mão trocavam de lugar, as pessoas começavam a repetir “garçom!”, quando, pela porta entreaberta que dava para o jardim, entra uma suricaca.

Diferente do coati, a suricaca tem pelo baixo, amarronzado, e a cauda felpuda, de coloração cremosa. Do tamanho de uma anta (há relatos de machos com a altura de um potro adulto), exibe olhos mel numa cabeça média, de focinho curto, com dobras quase no encontro da boca com as orelhas.

Tem uma peculiaridade: o pênis é como dos cães, com um bulbo na ponta, só que mais ossudo quando excitado, exatamente como estava o do exemplar que invadiu a solenidade.


Os homens e suas respectivas senhoras se afastaram aos tropeços, enquanto o bicho atravessava lentamente o hall, fazendo no pêlo do tapete um risco molhado com a ponta do pescoço rosa.

– Alguém, pelo amor de Deus, retire esta coisa horrenda e asquerosa daqui!, esbravejou um executivo de terno roxo em tom autoritário, para quem a suricaca olhou com mais afinco.

Endemoniado, o animal rugiu seco e avançou, congelando a alma e a reação do nobre homem, que caiu ao tentar correr, como um bezerro recém-nascido que tropeça com as ancas dobradas para cima.

Os convidados reclamaram do mau cheiro dos aspargos e foram imediatamente restituídos com ostras frescas. Enquanto isso, o fidalguia apreciava um parma cru avassalador.

Machal

quarta-feira, novembro 15, 2006

Um breve ensaio sobre o adeus às fezes

Fezes: breves são os encontros, inesquecíveis as despedidas. A última imagem, como uma foto tirada. O tempo e o espaço, imóveis. A descarga é o elemento de segregação. Se são dois pedaços ou mais, pode haver esperança de um deles ficar na estação-latrina, submergindo para um segundo adeus. Mas a despedida é realmente dolorosa se o cocô estiver sozinho. Por onde andará o pobre garoto errante? Por quais esgotos passará? Alguns andaram em Aushwits - que histórias horríveis devem nos contar? Mas o fato é consensus omnium: todos se despedem das fezes antes de dar a descarga. Pelo menos os bons o fazem.

A explicação vem da Mitologia Grega. Merdúnio era filho de Zeus com uma lavradora, a mais bela dos campos. A beleza do jovem era radiante, com sua pele morena e seus olhos amarelos cor de milho. Outros olhos o quiseram, os olhos da deusa Deméter. O amor era proibido. Talhado pelo ciúme como uma obra de Hefestos, Zeus resolveu se vingar de seu filho Merdúnio, o enviando para a terra de Hades (que governava o sombrio mundo subterrâneo com sua esposa Perséfone, um lugar escuro e triste, nas profundezas da terra, povoado pelos espíritos das pessoas que morriam. Um esgoto, diria).

A vingança alcançava também a deusa Deméter. A sentença cruel, de uma crueldade provinda das entranhas: a amada deveria defecar seu próprio amado. Era como se Julieta cagasse Romeu. Assim, Merdúnio virou cocô no olímpico ânus de Deméter. Saldo mundano e final, ele virou adubo, ela adeusa da agricultura. Por todos os anos (ânus) a humanidade ficou com o sentimento de culpa. Todos os dias, nos tronos dos mortais, uma despedida solene e silenciosa é rompida somente pelo trovão de uma descarga.
Dr. Raul Bukowski, filósofo visceral e gastroenterologista. Costuma tocar Wagner ou Beethoven nas solenidades de despedida fecal

segunda-feira, novembro 13, 2006

Lacraias e lesmas na atmosfera

Os miseráveis da Galiléia logo perceberam: aquele que se materializara ali em frente era um sujeito diferente: como poderia da respiração de suas narinas sair pequenas borboletas coloridas?

– Meu projeto é o melhor. Vejam bem vocês. Vou distribuir minha proposta de governo e tenho certeza de que se analisarem, pessoas inteligentes como são, vão perceber...

E enquanto falava o homem de camisa azul e gravata sóbria, de sua boca voavam pétalas de rosas perfumadas como a verdade mais absoluta da mais sublime das escrituras.

– E o que o senhor vai fazer pelos jovens?, perguntou o jovem pescador da Galiléia, que naqueles idos estava certamente fodido e mal pago.

– Os jovens são o futuro da nação, temos que dar oportunidades. Oportunidade de emprego, incentivar empresas a conceder o primeiro trabalho ao jovem cheio de vontade e garra. Sem falar nos estudos. Porque um país sem o saber é um país entregue ao esquecimento e longe do que nosso povo merece e tem direito. É preciso transformar essas cavernas áridas em escolas, ministrar cursos profissionalizantes, fazer o financiamento a juros populares de instrumentos de trabalho...

E enquanto o homem abanava os braços, flores das mais lindas
surgiam pelo solo desértico da Galiléia; da poeira de suas pegadas nasciam pequenos marsupiais, uma seriema e um filhote de tigre albino. Na empolgação mais extrema, do encontro de suas palmas, escorreu lentamente um unicórnio. O eleitorado enxotou os animais, que por onde correram nasceu grama.

– Mas do que adianta curso e varas de pescar com molinetes italianos se o Mar da Galiléia não tem peixe nem pra remédio?, rebateu o velho pescador oposicionista.

– Meu senhor, vejo que ainda não teve a merecida oportunidade de analisar meu plano de governo. Na página 121 está claro. Vou encher o Mar da Galiléia de peixes: carpas japonesas, tambaquis, pirarucus, lambaris, pacus, traíras também, por que não? Vou distribuir o cheque-peixe. Cada cidadão terá o direito de pescar o seu peixe todo o dia. Nenhuma criança mais passará fome. Vou consolidar projetos e fazer muito mais.

Um par de arco-íris já saía dos olhos do palestrante, transformava em uma fábrica de cestas-básicas uma grande rocha onde eram sacrificadas as prostitutas velhas, quando o leproso rastejante chegou às suas sandálias de pescador da Galiléia, mesmo porque na página 157 estava claro que era necessário incentivar a produção nacional.

– Beije, homem, beije meus pés.

Quando o lábio inferior – que de tão podre parecia mais a xoxota de uma vaca em fase gasosa de putrefação – tocou a joanete, num estouro subiu o enxofre: o leproso foi-se, substituído por um caucasiano saudável. O candidato não mais era: em seu lugar um bode de camisa azul e gravata serena.

O povão ergueu o bicho em seus braços e gritou: – Já ganhou!, Já ganhou! Por trás dos ombros surgiram bandeiras em longas lanças marrons!

Jogado para cima, na mais alta atmosfera que poderia alcançar com a força daqueles bíceps miseráveis, o bode peidou: de seu cu voaram lacraias gigantes e lesmas ácidas em meio a um caldo molhado.
John Howell

domingo, novembro 12, 2006

O dia em que a notoriedade de Normando Paschoal se estendeu aos imagos negros

De tão competente e criativo, Normando Paschoal não era conhecido. Apenas uns poucos amantes da literatura obscura souberam que ele estaria na cidade naquela noite. Mas eram tão ralos seus leitores que, quando chegaram ao bar marcado, viram que se conheciam todos. O mestre cumprimentou os jovens com movimentos sutis de cabeça, quase imperceptíveis. Deu com a mão para três. Na mesa, cachaça, galinha, pessoas de preferências semelhantes e um manifesto de adoração. Sentaram-se e um altar se impôs, distanciando o santo dos apaixonados.

Normando Paschoal era feio. Um e noventa de altura, cabelos dispersos, dentes longos e amarronzados; um nariz acidentado de cravejos pretos, que mais pareciam covas de tão fundos, de onde brotavam pêlos grossos e mau cheiro. Não havia como não reparar na agressão aparente daquele homem, ou pelo menos no abatimento que transmitiam suas roupas brunas, no desespero silencioso que emanava de seus olhos fundos e bordados de cera. Uma ojeriza aplacava quem olhasse por poucos instantes aqueles lábios intercalados de rachaduras, de onde minava um sangue seco, pútrido.

Os jovens que haviam combinado com o escritor naquele bar se anteciparam na conversa. Dirigiam-se a ele e obtinham nada além de respostas curtas, sem perguntas de contrapartida, o que fez com que nascessem espinhos nas suas cadeiras. Eles sentiam um desconforto abissal. A mesa estava na calçada e qualquer coisa que quebrasse o silêncio era um alívio para o grupo, como foi com a chegada do garçom, com o motor desregulado da Veraneio que passara, com a menina maltrapilha que se aproximou e ofereceu flores de plástico.

– Lhe importunaria se pedisse um autógrafo neste meu livreto, mestre Paschoal?, ansiava um gótico moço, com uma caneta tinteiro e as costas da publicação apontadas na direção do convidado. Uma emanação lacrimejante de vinhoto saída da boca entreaberta de Normando precedeu a resposta:

– Afastem-se, por favor!


Uma borboleta preta pousou na camisa do escritor, na altura do coração. Ele observou o inseto e teve um sorriso incipiente, mas bastante pra fazer a mesa ficar menos tensa, pelo menos até quando outras duzentas borboletas apareceram e tomaram seu corpo magro, como folhas que se desprendiam das árvores anoitecidas e formavam uma colméia densamente negra sobre a cadeira. Paschoal gargalhava para elas – acompanhava com os olhos as que se aproximavam pra invadir seus restos – e gozava agora uma felicidade bizarra, envolvido pela praga.

Os leitores quiseram se transformar em larvas e saíram do bar à procura de casulos.
Mutum

Surge mais um apreciador de foie gras e vinho português, que reconhece também em peido de comidas grã-finas notas florais

Dr. Raul Bukowisk cumprimenta o governador depois de coçar a chapuleta, peida no jantar com empreendedores de destaque, ao mesmo tempo que sorri quando se dirige a demais autoridades e grandes empresários, em sinal de trato e compostura. É homem fino, bem sucedido como os fortes, com a vantagem de ser um legítimo possuidor de características suínas no desenho do cu. Carrega consigo, bem no meio da bunda, um digno olho de porco.

Parabéns, companheiro. Seja bem vindo nesta confraria de respeito, onde trocamos lições de moral, histórias bonitas e experiência de vida.

E aproveito este momento de enaltecimento, emocionado pela aparição abençoada de Dr. Raul Bukowisk, pra deixar o alerta, seguido de convite, a todos os homens de bom gosto: atentai, senhores, para o olho de porco. Contribuam com este blog miserável, que pode destruir a vida de milhares de pessoas. Aceitamos depósitos em conta. Notas de cinqüenta também são bem-vindas. Mas se não puderem gastar, se devem seis meses de pensão pros filhos e para as eis, se estão em falta com o pastor, pelo menos mandem seus textos (desde que saturados de ternura e fineza, que são detalhes muito importantes para nós).
Machal (assino também por John Howell)

quarta-feira, novembro 08, 2006

O reencontro

Suavemente o dia começa. Eu tenho meu bolso cheio de conchinhas. Tão suavemente. Depois de todos esses anos você não me conhece como da primeira vez que conversamos, a primeira semana, o primeiro beijo. O vento de verão veio queimando a frieza do nosso desencontro. Agora estamos aqui, eu 17 quilos mais gordo, você, 17 vezes mais linda. Os outros banhistas mal desconfiam que já fomos, antes, nossos. Voamos à noite, pegamos carona ao som de bregas boleros, dançavamos por aí, até que dancei sozinho. Queria dizer qualquer coisa estúpida agora, mas a idade não permite. Mas eu te amo. Só tem velhos nessa praia e minhas hemorróidas ardem. Razões? Antes fosse sua carreira de estilista, antes fosse qualquer coisa externa ou pressão da família.. Pelo contrário, seu pai me adorava, nossos pais se adoravam. Antes fosse outra paixão avassaladora. Mas não, nada disso, me trocou pois precisava de um pouco de ar. Não foi frieira, nem mal hálito. Não. E agora, preciso me aproximar de você pra dizer, não me controlo, é um desejo interno, preciso te colocar mais uma vez a par desse sentimento. Um sentimento de alívio, uma prova de que estou vivo, uma prova aromática de amor. Mas você nunca soube entender. Vou me aproximar. Vamos conversar, conversar, lembrar o que passou. O ultimo beijo recordar. E só aí te pedir, ao perceber que o sentimento se aflora. Não me importa levar outro fora. Meu amor, meu velho amor, puxe, sim, puxe meu dedo pra mim e pum...pum...puuuuuuuuuummmmm...e nosso amor é tão belo e único por sempre acabar assim...

Texto retirado de historia verídica. Pelos idos de 58, Dr. Bukowisk estudou a relação flato-social de alguns pouquíssimos indivíduos.

Dr. Raul Bukowisk, filosofo visceral e gastroenterologista