sexta-feira, novembro 24, 2006

Patroas esmagadas

Enquanto a primeira barata coçava o casco com a ponta de uma perna e gesticulava, a segunda passava as antenas sobre a massa acinzentada, macia e de odor lacrimejante: lambia um naco rançoso de gordura, curtido na água do esgoto, e se impressionava com a história da amiga:

– Você não vai acreditar no que a Neide fez!

– O quê, mulher?

– Um absurdo, veja você!

– Diz logo, então!

– Não é que ela usou meu banheiro hoje! Imagine que eu chego em casa na hora do almoço e me deparo com um papel higiênico usado no vaso, todo lá, com um rasgo manchado no meio.

– Essa sua empregada é um monstro de tão abusada, eu já avisei.

– Mas essa foi a gota.

– Ora, ela já fez coisa muito pior, admita.

– Não, isso foi o mais repugnante que aquela suína poderia ter feito. Fiquei imaginando: e se me chega uma visita? Eu teria que dizer que era meu?

– Que horror! Só sei que nunca mais voltaria à sua casa se a visita fosse eu.

Durante o diálogo, viajava pela borda do esgoto um tolete pleno, guiado por um camarão caolho, que deslizava seu veículo na papa apodrecida, deixando marcada para trás sua trajetória. Uma das baratas dá com a pata e pára o táxi-bosta. Elas entram e sequer reparam na cara do camarão abjeto.

– Toca pro banheiro, exige a primeira, enquanto a outra se acomoda no assento de verme. Sentadas, elas passam a observar a paisagem – o caminho lhes é longo e propício à contemplação.

Nas paredes das manilhas umedecidas, platelmintos sobem sobre os outros. Eventualmente, um se desprende do teto e cai, para ser guiado pela correnteza lenta, e acaba afundando quando encontra um degrau no curso do canal. Nestes locais sobe um gás adstringente, que afasta os musgos mais sensíveis. Minhocas brancas também não são raras; normalmente ocorrem enroscadas nos tufos de espuma e cabelo que se formam nas quinas.

– Não sou preconceituosa, você sabe, mas não entendo como há quem se envolva com gente como Neide.

– Urg! Me dá nojo!

– Para você ver...

O camarão encosta o belouro rente a um cano que dá para um ralo acima, no teto, por onde entram filetes de luz. As amigas deixam o veículo sem olhar para o guia.

– Atentem, senhoras, para o peso da borracha!, adverte o crustáceo da corcunda enlodada, sem que elas dêem a menor pelota.

As baratas sobem pela tubulação. Passam pelo buraco central do ralo, uma de cada vez, e chegam ao piso branco do banheiro, sem perceber, mas ao lado das pernas castanhas de Neide, que dava uma faxina. As duas permanecem estáticas, apenas mexendo suas antenas, combinando o passeio, enquanto um pé de Neide levita vagarosamente, formando uma sombra ao redor dos insetos.


Três segundos de misericórdia: como uma prensa pneumática a canela seca da empregada alastra o vento e atinge as amigas, que explodem e botam para fora uma pasta branco-amarelada, cuja fedença causa ânsia e precipita Neide, que age rápido e despeja o desinfetante para limpar a imundície das patroas.

Mutum

Um comentário:

Pablo Alcântara disse...

É nisso que dá sair do paraíso e visitar o limbo.