domingo, novembro 12, 2006

O dia em que a notoriedade de Normando Paschoal se estendeu aos imagos negros

De tão competente e criativo, Normando Paschoal não era conhecido. Apenas uns poucos amantes da literatura obscura souberam que ele estaria na cidade naquela noite. Mas eram tão ralos seus leitores que, quando chegaram ao bar marcado, viram que se conheciam todos. O mestre cumprimentou os jovens com movimentos sutis de cabeça, quase imperceptíveis. Deu com a mão para três. Na mesa, cachaça, galinha, pessoas de preferências semelhantes e um manifesto de adoração. Sentaram-se e um altar se impôs, distanciando o santo dos apaixonados.

Normando Paschoal era feio. Um e noventa de altura, cabelos dispersos, dentes longos e amarronzados; um nariz acidentado de cravejos pretos, que mais pareciam covas de tão fundos, de onde brotavam pêlos grossos e mau cheiro. Não havia como não reparar na agressão aparente daquele homem, ou pelo menos no abatimento que transmitiam suas roupas brunas, no desespero silencioso que emanava de seus olhos fundos e bordados de cera. Uma ojeriza aplacava quem olhasse por poucos instantes aqueles lábios intercalados de rachaduras, de onde minava um sangue seco, pútrido.

Os jovens que haviam combinado com o escritor naquele bar se anteciparam na conversa. Dirigiam-se a ele e obtinham nada além de respostas curtas, sem perguntas de contrapartida, o que fez com que nascessem espinhos nas suas cadeiras. Eles sentiam um desconforto abissal. A mesa estava na calçada e qualquer coisa que quebrasse o silêncio era um alívio para o grupo, como foi com a chegada do garçom, com o motor desregulado da Veraneio que passara, com a menina maltrapilha que se aproximou e ofereceu flores de plástico.

– Lhe importunaria se pedisse um autógrafo neste meu livreto, mestre Paschoal?, ansiava um gótico moço, com uma caneta tinteiro e as costas da publicação apontadas na direção do convidado. Uma emanação lacrimejante de vinhoto saída da boca entreaberta de Normando precedeu a resposta:

– Afastem-se, por favor!


Uma borboleta preta pousou na camisa do escritor, na altura do coração. Ele observou o inseto e teve um sorriso incipiente, mas bastante pra fazer a mesa ficar menos tensa, pelo menos até quando outras duzentas borboletas apareceram e tomaram seu corpo magro, como folhas que se desprendiam das árvores anoitecidas e formavam uma colméia densamente negra sobre a cadeira. Paschoal gargalhava para elas – acompanhava com os olhos as que se aproximavam pra invadir seus restos – e gozava agora uma felicidade bizarra, envolvido pela praga.

Os leitores quiseram se transformar em larvas e saíram do bar à procura de casulos.
Mutum

4 comentários:

equipe com pregas de porco disse...

alguma mariposa dessas entrou-lhe pela rabeta?

JH

equipe com pregas de porco disse...

Na verdade, sim. Por isso mesmo é que o grupo se viu obrigado a deixar o bar. Aqueles góticos – e consequentemente homossexuais reprimidos – imaginaram um mariposo carnudo e de cabeça lisa e rosê. Seguraram a coceira no botão do sobretudo e partiram apressados.

Macau

equipe com pregas de porco disse...

na verdade, um situação social sendo contenstada por mutum com grande júbilo.

JH

equipe com pregas de porco disse...

como há verdades por aqui!

jh